Fotos: Júnior Panela / Felipe Abud
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terça-feira, 23 de março de 2010
Mestres do Mundo: Cartilhas do corpo e da voz
Reunindo mestres das culturas populares de vários estados brasileiros, o V Encontro Mestres do Mundo, em Limoeiro do Norte, foi espaço de troca e mostra de técnicas e saberes, além de evidenciar os muitos meios que os artistas do povo se valem para garantir a continuidade de suas tradições.
Gravada pela lei, a expressão "tesouro vivo" evidencia a riqueza dos saberes e fazeres da tradição popular. Ilustram a ideia de fortuna, algo maravilhosa e encantada, que é preciso descobrir. Substituiu outra definição que não caiu em desuso: a de mestre (da cultura). É nesta que se reconhecem os quase 60 titulados pela Secretaria da Cultura do Estado (Secult) - o que é rico, para os mestres, é sua cultura, a tradição da qual são guardiães e promotores; e, para eles, não estão nada ocultos. A riqueza é para ser partilhada.
Mestre Lúcia aprendeu a manipular e dar formas ao barro ainda criança. Mestre Zé Pio se dedica há cerca de cinco anos à difusão do reisado. Logo abaixo, Mestre Bigode do Bacamarte. (Fotos: Júnior Panela / Felipe Abud)
A maestria os define: é o ponto de intercessão de manifestações culturais aparentemente tão distintas, que a umas caberia a definição de arte, enquanto outras precisaram ser pensadas na condição de ritual, de técnica ou de saber - caso do mateiro, que lê sinais na natureza tão qual outros mestres tradicionais, os profetas da chuva, grupo que ainda não teve integrantes contemplados pelo edital. (Não é o único ponto de contato: sonoridades afrodescendentes despontam num canto de origem indígena; passos de uma dança remetem à Idade Média europeia, enquanto tratam do universo da mata nordestina...).
O mestre é aquele que sabe, aquele que faz. Centro de uma cultura que sobrevive graças a ele, pois tem nele a ligação com o passado. E é ele quem aponta para o futuro, indicando a direção aos mais jovens, para a continuidade daquele saber.
No V Encontro Mestres do Mundo, que aconteceu no final de semana passado (de 17 a 20 de março), em Limoeiro do Norte, se viu que, aí também, na condição daquele que tem algo a legar, os mestres se diferenciam. Não é apenas as artes que são distintas, também o são os meios utilizados por cada um deles para garantir que elas sejam transmitidas e apropriadas pelas gerações mais jovens, que lhes garantam a sobrevivência. Métodos distintos, identidade.
Aprender é fazer
Lúcia Pequeno, mestre louceira de Limoeiro do Norte, conta que aprendeu a manipular e dar formas ao barro ainda criança. "Todo mundo em casa fazia. O pai de minha mãe, meu pai, minha mãe... Minhas irmãs também fazem, tem tia minha que faz", conta a artista, que há 50 anos produz peças feitas de barro extraído na própria comunidade.
Na casa de Lúcia não lhe restou nenhum aprendiz. Tem dois filhos, homens, e, apesar de seu pai também trabalhar com barro, hoje a atividade que desenvolve é praticada predominantemente por mulheres de sua comunidade, Córrego de Areia (localidade afastada de Limoeiro). "Só irmão meu faz. Aqui em Areias tem um senhor que também faz, que é um tio meu. Antigamente não tinha quase emprego, e a pessoa era obrigada a trabalhar com o barro, para vender na feira do Limoeiro", diz.
Hoje, o trabalho das louceiras do Córrego de Areias têm trabalhos comercializados na Ceart, em Fortaleza, e já encontraram compradores estrangeiros. Mudam os locais do comércio das peça se, com eles, o repertório de peças produzidas. A forma de fazer permanece - em suas técnicas essenciais, já que há variações de instrumentos utilizados, de acabamento e de formas produzidas. Mais que a peça, é este saber fazer que é transmitido. "Pra aprender, a menina tem que ficar do lado, prestando atenção. Vai mexendo com barro e depois eu vou dizendo como é que tem que fazer. Tem que amassar o barro com o pé, depois faz com a mão e deixa endurecer, para depois deixar bem lisinho, usando os instrumentos. Para alisar a peça, eu uso o cabo de pente. Depois leva pro forno, por umas quatro horas. Do jeito que se ensina um aluno, a gente ensina também", conta Lúcia Pequeno, quem já fez as vezes de professora para uma sobrinha.
É assim também, ficando do lado, olhando e, aos poucos, arriscando a fazer que se forma um penitente. A Ordem de Penitentes de Barbalha, que congrega homens que cantam benditos e praticam rituais de autoflagelação para remissão dos pecados do mundo, supera os 100 anos de existência com uma transmissão de saberes baseada na experiência conjunta. Mestre Severino, decurião (líder) da ordem, explica: "o penitente aprende os benditos ouvindo, acompanhando os mais velho. Com tempo ele canta uma coisinha e vai aprendendo".
Estima-se que a ordem de Seu Severino tenha cerca de 180 benditos em seu repertório, confiados apenas á memória do grupo. "Precisa ter uma 'ideia' boa pra aprender. Porque é muita coisa pra gravar, como tenho aqui no meu juízo", explica. O ritmo dos benditos, repetitivo, e as repetições dos próprios versos contribuem para os processos de memorização.
Ensaio
Zé Pio, pescador aposentado e mestre do reisado, tem atenção especial ao ensinamento de sua arte. Há cerca de cinco anos, dedica-se exclusivamente à manutenção e transmissão da tradução. No bairro Goiabeiras, em Fortaleza, ele atende mais de 30 jovens. Eles aprendem os cantos, as danças e as brincadeiras do reisado. Zé Pio acredita no ensaio. As reuniões são periódicas e cada aprendiz, conforme o nível que se encontre, tem atenção especial do mestre, que ajuda a moldar o saber que terminará por se manifestar na apresentação.
"Não importa se é criança de três anos (idade em que o mestre começou a brincar) ou se é um velho de 100 anos. Esse é um brinquedo bom. A gente faz por amor a nossa cultura", ressalta. Mestre Zé Pio defende que o Estado contribua para, com incentivos para os alunos, para que o reisado se perpetue. "Tem que ter uma bolsa pra incentivar os alunos. Eles acham que não ganham nada na brincadeira. Quando ganho cachê, é tão pouco se demora tanto a aparecer o dinheiro que não tem como dividir com eles. Só que sem meus brincantes eu não sou nada, nem eles sem eu", defende.
Gilberto Augusto, Mestre Gil, de Piquete (SP), cidade do Vale do Paraíba, quebra a cabeça pensando soluções na transmissão da tradição do Jongo. Diretor de escola pública, ele atua em diversas frentes. Para a sala de aula, ajudou a produzir um material didático de apoio, para compreensão da comunidade Quilombola de Piquete. O mestre também tem que estar disposto a aprender com os mais novos.
"Não é preciso abandonar o novo para cuidar do tradicional", acredita. Ele ilustra sua sentença: "Como você vai falar de tradição pro jovem com tanta coisa sendo oferecida pra ele (celular, internet, televisão etc)? Eu uso estas mesmas coisas! Você filma com o celular, então filma nossa dança e coloca no Youtube. Quem sabe fazer blog? Faz um blog do Jongo, cria uma comunidade no Orkut do Jongo de Piquete". Para ele, a tecnologia não é vilã, mas uma aliada na transmissão de um saber que está intimamente ligada à identidade daquele grupo. Mestre Gil passa longe dos discursos apocalípticos, que veem em outras manifestações ameaças a permanência da tradição. "Quer dançar funk? Deixa os meninos dançarem funk. Mas que eles dancem o Jongo também", opina.
O jornalista participou do Encontro Mestres do Mundo como coordenador da Roda do Sagrado (ao lado do prof. Wellington Jr., do curso de Comunicação Social da UFC). Ele viajou a Limoeiro do Norte à convite da produção do evento.
Informações: Diário do Nordeste / Reportagem: Dellano Rios
Fotos: Júnior Panela / Felipe Abud
Fotos: Júnior Panela / Felipe Abud
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3 comentários:
Realmente marcante, Limoeiro do Norte foi palco de um grande evento, que por muitos é desconhecido, mas que acredito, que ganhará seu devido reconhecimento. Espero estar presente no próximo. Agradeço desde já a hospitalidade de Limoeiro, mesmo tendo seus contras, fui super bem recebido e auxiliado pela Secretaria de Cultura.
Abraço à cidade de Limoeiro.
Davi Cordeiro Barbosa
Estudante de Lazer - IFCE Campus Fortaleza
Grande evento.Parabéns a todos de Limoeiro
Sem dúvida que sempre que seguimos um blog ou somos seguidos, formamos uma verdadeira teia, capaz de ter um alcance quantitativo e qualitativo para matérias formativas e informativas, que mídia alguma consegue ter. POR ISSO PARABÉNS PELO BLOG.
Doutra feita, CONVIDO VOCÊ, seus seguidores e quem você segue, para lerem matéria sobre o espetáculo SAGRADO E PROFANO, que ocorrerá na cidade de Senador Pompeu, interior do Ceará, no pequeno Distrito de Engenheiro José Lopes. Experiência artística que mobiliza toda a população, que além de encenar a Paixão de Cristo ainda tem os caretas, que há cerca de 70 anos, saem pelas ruas. Experiência artística, social, política, folclórica, econômica..... que merece ser relatada, imitada e, sendo possível, vista e visitada ao vivo. Boa leitura em:
www.valdecyalves.blogspot.com
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