O Vale do Jaguaribe é uma das regiões do Estado com mais água. Porém, os sertanejos ainda passam sede.
Não é da seca, é da cerca que mais teme o sertanejo do Vale do Jaguaribe, que vive uma realidade paradoxal, mas no popular adjetiva como vergonhosa mesmo: possui a maior reserva hídrica superficial e subterrânea do Estado, e padece do mesmo problema dos outros rincões da caatinga - dificuldade de acesso à água. Para se alimentarem do líquido, famílias precisam "roubar" água de um canal de irrigação. O mesmo acontece no Canal da Integração, ou Eixão, que desloca águas do Açude Castanhão.
São estruturas de escoamento de água construídas pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), mas que têm priorizado água para plantação nos perímetros irrigados, em detrimento das famílias sedentas que veem a água passar em frente de casa e ficam a depender de carro-pipa ou da "esperteza" para sobreviverem.
Para aqueles não atendidos pelas políticas públicas, resta o que eles chamam de esperteza. Mas é instinto de sobrevivência mesmo. Dia sim, dia não, as mulheres da família Nascimento andam dois quilômetros e meio para conseguir água de beber e cozinhar. Espreitando para que a Polícia nem vigilantes percebam, entram no canal construído pelo Dnocs que leva água para o Perímetro Irrigado Jaguaribe Apodi, na
Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte. "É a nossa carroça-pipa", brinca Maria Erineide do Nascimento, 30 anos e três filhos, semianalfabeta e o ofício de carregar água para casa "desde que me entendo por gente". É a sina daquelas mulheres.
Em cima da carroça, puxada por um jumento, vários tubos de plástico que um dia armazenaram óleo diesel e agrotóxicos. "A gente lava várias vezes antes de usar", conta, sobre os depósitos que não deveriam ser reutilizados para armazenamento de água. Francisca Erilene, a mais nova, de 19 anos e única que ainda não é mãe, vai na frente puxando o jumento. Atrás, em duas bicicletas numa "escolta" estão Erineide e Eridene, a do meio, de 23 anos e grávida de oito meses do primeiro filho.
As irmãs Erilene e Eridene Nascimento, em Limoeiro do Norte, retiram água do perímetro na carroça-pipa. (Foto: Melquíades Júnior) Luta diária
A carroça-pipa é estacionada com cuidado, porque de outra vez, o jumento caiu com tudo no canal, "e foi uma luta para tirar", diz Erineide. Luta é o que elas enfrentam para tirar a água: para não ficarem presas no canal de paredes inclinadas, seguram-se numa corda que é amarrada na carroça, enquanto com o outro braço se esticam metendo o balde dentro da água, subindo novamente para encher os depósitos na carroceria. Feito o movimento dezenas de vezes, enchem-se os depósitos, e antes de ir embora só um mergulho rápido no canal, tomar banho de roupa e tudo, "porque chegar em casa a água já fica pros outros", que somados a elas contam nove filhos de seu Alfonso Cesário do Nascimento e dona Maria Ednir da Conceição do Nascimento.
A água retirada do canal do perímetro irrigado não é própria para consumo doméstico. Além de não ter sido tratada, é contaminada por agrotóxicos. Especialistas da Universidade Federal do Ceará (UFC) coletaram 46 amostras de águas de várias comunidades e em todas elas encontrou princípio ativo de venenos.
O sociólogo e doutor em economia Celso Furtado (1920-2004), dezenas de estudos publicados, afirmava que "o problema do Nordeste não é seca, é cerca". E sem ter ideia de quem foi esse pensador Eridene se diz invocada quando para, pensa e não entende porque vai água para as plantas e para ela, não. "E se a polícia vê pode até me prender".
A reclamação é a mesma de famílias de Jaguaribara e Morada Nova, por onde passa o Eixão da Integração, com águas do Castanhão que até o próximo ano devem abastecer Fortaleza e Região Metropolitana, com prioridade para o Complexo Portuário do Pecém.
Água próxima e mal distribuída para consumo das comunidades. De toda a água armazenada nos 133 açudes no Ceará monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), cerca de 40% está armazenado no Vale do Jaguaribe. É no subsolo da mesma região, fronteira Ceará e Rio Grande do Norte, que está situado o aquífero Jandaíra, já considerada a segunda maior reserva de água subterrânea do Nordeste. É também no Vale do Jaguaribe onde está um dos movimentos sociais mais organizados que possibilitam ações na perspectiva de convivência com o semiárido. À frente dos trabalhos está a Cáritas Diocesana. Porém, o método alternativo de convivência com a sequidão, mas com qualidade de vida, está encontrando embate com o modelo de produção baseado no agronegócio dos perímetros irrigados. A comunidade de Lagoa dos Cavalos, em Russas, considerada uma das maiores referências em agroecologia no Nordeste, está ameaçada pelas obras de construção dos canais de irrigação do agropolo fruticultor do Perímetro Tabuleiro de Russas.
Sustentabilidade
No Vale do Jaguaribe, porém, não há só dificuldade de acesso à água. Há experiências alternativas de convivência com o semiárido. Nas comunidades Riacho Seco, Caatinguerinha e Bom Futuro, em Potiretama, as ações vão dos quintais produtivos à barragem subterrânea, passando pelos manejos agroflorestais. "É tudo integrado, em plantios consorciados. Sem queimada, sem agrotóxicos, e com a preocupação de que haja reposição dos nutrientes no solo", explica Angerliana Sousa, da Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte. A instituição é uma das maiores responsáveis pela difusão e capacitação dos manejos alternativos de convivência com o semiárido no Vale do Jaguaribe, por acreditar que a região é produtiva, quando manejada com sustentabilidade.
ALTERNATIVA
Convivência com o semiárido é realidade
Seu Neumar tem cacimbão com água há 20 anos. O reservatório fornece água para sua casa e para todos os moradores da Vila São José, no Município de Iracema, onde famílias serão desapropriadas. Cercada com arame farpado já está a cacimba de seu Neumar (ninguém o chama de Manoel Gomes de Morais), só por segurança de que ainda não fechem seu poço, já que foi desapropriado para construção da barragem do Figueiredo. De seu cacimbão fornece água para a Vila São José, em Iracema.
"É limpa e boa como uns todo, tô aqui desde menino e nunca faltou água, tem até peixe", diz o agricultor de 73 anos. Enquanto a barragem não é concluída, mantem-se no seu sítio, de onde o poço fornece água para beber e plantar caju, goiaba, banana e criar peru, galinha e gado. Lamenta que vai sair, mesmo sendo indenizado: "aqui eu tenho o que preciso, mas só arredo o pé quando fecharem o meu cacimbão". Outras alternativas de convivência com o semiárido são adotadas por comunidades jaguaribanas.
E esse fechamento da cacimba pode ser até o fim do ano, prazo para conclusão das obras da barragem. Mas esse poço profundo tem pelo menos 20 anos que não falta água um dia sequer. "Quando era diminuindo, a gente cavava mais, e num instante aparecia água. Essa água aqui não é salgada, é boa mesmo. Num faço cerimônia, quem vem aqui pode tirar, que num tem conversa". A cacimba é alternativa dos moradores da Vila São José, em Iracema.
A Barragem do Figueiredo é erguida a um custo aproximado de R$ 121 milhões, mas com apenas 0,01% desse valor milhares de famílias de outras comunidades de Potiretama, Iracema, Morada Nova e Russas conseguem viver tendo água para beber, plantar e criar, por meio de alternativas de convivência com o semiárido. E mais: segundo especialistas, com a perspectiva de um clima cada vez mais quente e a escassez de água, essas medidas alternativas são consideradas mais sustentáveis e duradouras que os propalados açudes. É o alternativo que pode virar principal.
Quintal produtivo
Na perspectiva de aprender a conviver com a aridez, há experiências exitosas. Tem quintal que, de tão produtivo, a dona de casa comercializa o excedente. É assim com o jerimum, que é vendido todo ano, e boa parte das hortaliças. Em muitos casos o quintal produtivo é integrado com a "farmácia viva", de produção de plantas medicinais. O quintal de dona Graça Moura, da comunidade de Caatingueirinha, é exemplo do que pode dar certo, e por muito tempo, com baixo custo, pouca água, e muita qualidade de vida.
No início "Gracinha" não acreditava que num espaço tão pequeno fosse possível plantar tanta coisa. Agora seu quintal tem sapoti, limão, banana, coentro, pimentão, tomate, jerimum, beterraba, macaxeira, berinjela e outras mais.
Informações: Diário do Nordeste / Reportagem e Fotos: Melquíades Júnior
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