segunda-feira, 5 de abril de 2010

'A gente quer é viver com dignidade'

Moradores duvidam das promessas eleitorais de terem suas casas de taipa substituídas pelas unidades de tijolos.
Não tem material de construção mais barato do que para quem quer construir uma casa de taipa. O barro "tem em todo canto", carnaubeira "é só avistar pro longe", até que com terra molhada e madeira dura, em talos amarrados como quem faz gaiola, a última casa de dona Maria Zilda Ribeiro de Melo ficou pronta e passou a abrigar toda a filharada há cinco anos.
A comunidade do Tomé, onde mora, está eufórica. "Tão dizendo que vão sair umas casas pra substituir as de taipa". A história é verdadeira, mas não é nova. Ressurge como esperança sempre que tem uma eleição no final do ano. Feito migalhas aos porcos, raríssimas vezes as famílias recebem tijolo para sair do barro. Enquanto espera "com um pé atrás", a dona-de-casa, lavadeira e agricultora derruba a sua casa mais antiga de barro. Vai levantar com tijolos. E acredita que a cada dia que passa está mais perto de viver "com dignidade".
Na comunidade do Tomé, a moradora Maria Zilda Ribeiro de Melo espera, ansiosa, a substituição da casa de taipa. A esperança é renovada somente nos anos de eleição.
Depois da multiplicação dos filhos, estes cresceram e foram multiplicando os netos, e agora ao redor da casa materna existem as latadas, extensões de casinhas de taipa onde as filhas de dona Maria Zilda se juntam com os companheiros e fazem as novas famílias, crianças correndo para os lados e que a avó acaba tendo que também tomar de conta. O cordão umbilical agora é de barro.
Mas se "as casas saírem", cada família vai querer a sua. "Com tanta riqueza no mundo, ter uma casa de tijolo é o de menos porque a gente quer é viver com dignidade", resume dona Zilda. A casa de tijolo que está levantando é a segunda, pois a primeira ganhou, cinco anos atrás, num bingo. Vendeu para pagar as contas.
Apesar de não terem encontrado focos do mosquito barbeiro na comunidade do Tomé, não falta muriçoca e outros riscos de doença com a falta de sistema sanitário adequado. Situação análoga é enfrentada pela comunidade de Cabeça Preta, também na Chapada do Apodi.
As casas de tijolos convivem com as de taipa. Para dar uma maquiada nestas, muitas são erguidas tendo somente a parede da frente de tijolo, pintada com cal e "enfeitada" com o medidor de energia e a antena parabólica. Mas quando se vai além, a paisagem é sóbria e tem-se a impressão de entrar numa caverna. Com os tetos baixos, o calor é intenso durante as tardes; com as frestas nas paredes, chega a fazer muito frio de madrugada; e quando chove, o medo é de desabar tudo.
As casas de pau-a-pique são frágeis porque foram construídas de forma rudimentar. A madrugada de 21 de março de 2008 só não foi trágica para a família de Francisco Luciano de Araújo porque, quando sua casa de barro desabou na chuva de 79mm, ele, a mulher e as crianças conseguiram sair em tempo. "Se eu não seguro a parede, tinha matado meus meninos", conta Luciano, sobre o dia em que a parede caiu sobre a cama onde dormia os dois filhos.
Mesmo morando numa casa de tijolos, eles ainda residem na Rua Aritstóteles Nogueira, considerada uma das mais miseráveis de Russas, na área conhecida como "Favela do Agaci", bairro Planalto da Bela Vista. Lá é também a terra de Francisco Gerônimo Loureiro, de 62 anos, conformado de que vai morrer sem ter o prazer de dormir numa casa de alvenaria. Já se acostumou com a vida que tem. "Meus filhos tão ´tudo´ criado, me desquitei da mulher faz tempo, então eu vou morando aqui até onde der".
Existem projetos para a substituição de casas no Planalto da Bela Vista. O problema não é diferente dos grandes centros urbanos: uma área de risco é povoada, as famílias são transferidas para um lugar seguro e outras ocupam o lugar. Uma parceria da Prefeitura de Russas com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), por meio do Projeto de Melhoria Habitacional para o Controle da Doença de Chagas. O mesmo acontece em mais da metade dos municípios do Ceará: parcerias das três esferas governamentais para a substituição de casas barrentas pelas de alvenaria.
Eunice dos Santos optou pela casa de taipa porque, durante as tempestades, é mais fácil fazer os reparos.
ESPERANÇA
Diagnóstico aponta habitações precárias
O líder comunitário José Maria Filho juntou-se aos agentes de saúde na Comunidade do Tomé para realizar um levantamento das piores moradias existentes. Multiplicou por 50 a esperança de novas unidades habitacionais para a comunidade.
De acordo com José Maria, serão liberados R$ 900 mil para a construção de 50 casas no lugar das atuais. As famílias beneficiadas já estão cadastradas. O problema é que, segundo o líder comunitário, existem mais de 500 casas de taipa na Chapada do Apodi, e a cada casa de tijolo que se ergue há, pelo menos, mais uma de barro. As crianças crescem e, mal chegadas à juventude, constituem novas famílias. Saem do barro da mãe para o "barro próprio".
É descendo a Chapada que os problemas ambientais e de saúde provocados pelas casas de taipa são mais evidentes. Enquanto neste relevo com mais de 500 casas de taipa não se encontrou foco de transmissão da doença de Chagas, foi em outras localidades que se observou um índice médio de infestação de 4,2%, colocando o Município como de alto risco para a transmissão da doença.
De acordo com parecer técnico do supervisor do Núcleo de Vetores da Secretaria Estadual da Saúde (Nuvest/Sesa), Quirino de Sousa, das 34 localidades pesquisadas, 24 indicaram positividade para o triatomíneo. Somando-se às outras dez nas áreas limítrofes, chegou-se à quantia de 188 casas de barro que precisam de melhorias.
DESIGUALDADE
Estudante tem o sonho de morar em casa de tijolos
É no primeiro ano escolar, o jardim, que a professora da escola pública municipal exercita com as crianças o desenho, a pintura. Numa folha de papel que já foi somente branca, uma árvore de verde imponente, tronco marrom, e vários pontilhados avermelhados, que podem representar maçã, manga coité ou acerola, depende do tamanho do fruto e da intenção de quem pinta.
Um caminho sinuoso leva a uma bonita morada com porta e janelas frontais, telhado alto e paredes coloridas. O desenho não vem com legenda, mas é de uma casa de tijolo que se está falando. As crianças de hoje, mais do que os pais antigamente, têm associado a imagem de uma moradia digna de alvenaria, não de terra.
Não é luxo nem "frescura". Uma casa de aspecto cavernoso atrai mosquitos, mas principalmente o barbeiro, transmissor da Doença de Chagas. Com o chão também de terra nem dá para Eliene do Nascimento brincar com as bonecas, ou colocar os seus livros do 6º ano espalhados no meio do quarto. Aos dez anos de idade, segue no sonho de ter uma casa de tijolo. Vem do barro assim como a sua de taipa, "mas é bem diferente, é de verdade", resume.
Eliene do nascimento faz o dever de casa na morada de taipa. Tem o desejo de viver entre paredes como nova estrutura.
Enquanto os projetos habitacionais não chegam até a casa de Eliene, sua mãe Luciene paga R$ 50,00 por mês de aluguel para morarem na casa de terra de quatro cômodos na Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte. Uma casa "sem graça", mas com duas mulheres felizes - pelo menos não paravam de rir com a visita da reportagem.
Tem gatos, coelho, e para começar bem a manhã um DVD pirata de uma dessas bandas de forró "do momento" na TV de 14 polegadas. Hoje, as folhas de papel de Eliene não têm mais casinhas ou árvores frutíferas. Só cálculos e exercícios que a professora passa, enquanto ela vai decidindo o que quer "ser quando crescer", ainda que já tenha certeza do que quer ter, de preferência antes que cresça.
O sonho de Eliene é o mesmo de muito brasileiros e cearenses que esperam, um dia, melhorar a qualidade de vida começando pelo setor mais essencial: uma morada digna.
Informações: Diário do Nordeste / Reportagem e Fotos: Melquíades Júnior

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