Grupo de jovens, em Limoeiro do Norte, participaram de curso que teve como objetivo preservar o patrimônio.
No livro, na escola, os estudantes fazem a leitura das manifestações culturais, a história das artes dos povos antigos, lendas folclóricas como o velho do saco, a perna cabeluda. Nas tradições, ouvem falar que a capoeira surgiu com os negros escravizados, e que o artesanato em barro, com os índios, muito antes do período colonial, ainda é fonte de renda nas feiras livres. Mas, sobre as manifestações culturais nos terreiros perto de casa, as artesãs da vizinhança, a procissão religiosa que passa na frente da escola, e mesmo histórias de lendas contadas pelos mais velhos do bairro, essas passam batido, desconhecidas dos livros escolares, dos educadores e, consequentemente, dos estudantes. A história começa a mudar com a projeção de estudos de educação patrimonial, que incentiva a pesquisa, o registro e a valorização cultural local.
O desconhecimento é o primeiro passo para a desvalorização, depois é só deixar que o tempo trate de gastar até o fim a existência de um patrimônio cultural, seja material (prédios, artesanato etc.) ou imaterial, como as danças e brincadeiras que atravessam gerações e na essência de ser contam a história de um povo. Até um dia desses, o jovem Miquéias Régis, de 14 anos, poderia levar mais tempo até ouvir falar em Chico Nogueira, e que bumba-meu-boi é que nem gente: pode ter o mesmo nome, porém, no resto, será sempre diferente.
Em Limoeiro do Norte, terra de Miquéias, tem a dança do "Boi Pai do Campo da Faceira", um cortejo circular da comunidade que teima em preservar o boi, cantando a sátira, o trabalho, o amor. Os versos curtos, rimados, caem no inconsciente musical popular: "Eu tenho um ´botão´ de açucena/ para dar a uma morena/(...) Quero ser dono/ da minha terra, ô morena/Quero morrer nos braços dela...". No V Encontro dos Mestres do Mundo, realizado de 17 a 20 passados em Limoeiro do Norte, grupos de jovens com gravador, câmera fotográfica, papel, caneta e motivação andavam de um lado para o outro, feito repórteres e pesquisadores movidos pela mesma mola: a curiosidade.
Participantes do curso de educação patrimonial entrevistaram os Mestres da Cultura, que participaram do encontro no município de Limoeiro do Norte. Eles foram movidos pela curiosidade. (Foto: Melquíades Júnior) De repente, mestre Chico Nogueira sai da roda da brincadeira e fica no círculo formado pelos participantes do curso de educação patrimonial, que ensejou o evento.
"Como foi que começou a brincadeira? Onde fica a comunidade? O senhor gosta do que faz?". Não faltaram perguntas, que o mestre foi respondendo, os jovens conhecendo e, desde então, cientes de que existe uma manifestação folclórica tão perto de suas casas: feito a água do rio que desce, a brincadeira do bumba-meu-boi foi passando de geração para geração, povoado para povoado, até bater no município de Russas e, daí, para onde hoje é Limoeiro do Norte, na localidade de Faceira. Foi quando um tal de João Caboclo construiu com suas próprias mãos o boi, feito de ripa de madeira assada. João é o tio do mestre da Cultura Chico Nogueira, que foi para o meio da roda de curiosos.
Valorizar o patrimônio do lugar foi o objetivo do curso Patrimônio para Todos, extensão da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, de Fortaleza, que trabalha a preservação do patrimônio cultural como um processo de identificação e autoestima da população.
Continuidade
"O estudo da educação patrimonial permite que eventos como os mestres do mundo acabem, mas que estudantes e professores das escolas possam dar continuidade a essa valorização", explica a presidente da Comissão Nacional de Folclore, Lourdes Macena. Ela participou do Encontro Mestres do Mundo, em Limoeiro, e admite que uma das prioridades da comissão nacional este ano é o trabalho de educação patrimonial.
"A educação se fundamenta no cotidiano, e o estudo do patrimônio favorece esse olhar da escola para os saberes tradicionais, do que está ao redor da escola. Se há essa valorização, as crianças e a juventude podem se tornar guardiãs do saber".
Tarefa de classe e de casa não poderia ser mais oportuna: entrevistar os mestres da cultura que participaram do Encontro. "Começamos repassando aos alunos as informações necessárias para a elaboração de conhecimentos relativos ao patrimônio e à cultura", afirma Juliana Marinho, da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho. Ela ainda explica que "os participantes exploram suas ideias de forma a tentar construir conceitos sobre o que é cultura. As turmas demonstraram bastante interesse pelos debates realizados em sala e isso é de grande importância para os trabalhos que serão promovidos posteriormente".
Em outras palavras, o interesse leva à preservação. "Temos que aprender a valorizar os nossos artistas, para podermos conhecer e valorizar os outros", afirma o secretário municipal da Cultura de Limoeiro do Norte, Renato Remígio. "O que esses jovens fizeram foi uma espécie de mapeamento, mas já entramos no compromisso de irmos à Câmara Municipal e propor uma lei que intitula os mestres da Cultura em nível municipal, pois é uma forma de oficializar esse patrimônio e fazer com que as pessoas busquem conhecer", defende.
Multiplicadores
De acordo com Renato Remígio, a educação patrimonial deve ser pauta das escolas públicas na região jaguaribana, "e os professores serão multiplicadores". É o que acontece em Estados como São Paulo e Bahia, onde funciona a Rede Nacional Ação Griô. Palavra africana, griô representa a figura da comunidade que defende, difunde e reverbera as tradições locais. Funciona como mensageiro e mantenedor das manifestações culturais, como os mestres da Cultura do Ceará.
A valorização do griô levou a uma estratégia pedagógica de inclusão do patrimônio cultural nas escolas e, além disso, foi legitimada em lei, executada pelo Governo Federal.
Para dizer sobre a emoção de participar de um encontro com outros mestres dos saberes e fazeres, seu Joaquim Ferreira, quilombola da Dança de São Gonçalo, do município de Quixadá, é abordado por um garoto, com caneta numa mão e folhas na outra. "Posso falar com o senhor?". Era Miquéias Régis, acompanhado de outros jovens empolgados para conhecer as histórias de vida desses seres um dia desconhecidos, que agora todos chamam de mestres da Cultura.
Mais informações:
Curso Patrimônio para Todos
(85) 3238.1244
Secretaria da Cultura de Limoeiro
(88) 3423.1165
RIQUEZAS DIVULGADAS
Site cataloga entrevistas
Da boca para o ouvido, daí para o papel e, em seguida, para a tela do computador. No site do Projeto Patrimônio para Todos, os alunos do curso realizam a primeira projeção do que aprenderam. Pela oralidade, as manifestações culturais são conhecidas, e os meios de comunicação tratam de aumentar a roda dos que conhecem as riquezas culturais de vários lugares. No site do Projeto Patrimônio para Todos, os alunos da educação patrimonial realizam a primeira projeção do que aprenderam. E as dezenas de entrevistas com mestres da Cultura serão catalogadas em seus documentos de texto e audiovisuais.
Há oito anos no Ceará, desenvolvido pela Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, em Fortaleza, o Patrimônio para Todos qualifica jovens para o tratamento das múltiplas questões que envolvem a valorização e, também, a conservação do patrimônio cultural. "Procuramos desenvolver uma metodologia de educação patrimonial que reúna agentes culturais, professores e alunos em um processo de elaboração de conhecimentos coletivos e persiga aspectos que favoreçam a transmissão de conhecimentos", explica Juliana Marinho, da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho.
No site do projeto (patrimonioparatodos.wordpress.com), entrou na pauta a divulgação do Encontro Mestres do Mundo e as diversas atividades que o compuseram, como o cortejo dos mestres, logo no início, e a terreirada no Córrego de Areia, onde a mestra artesã Lúcia Pequeno recebeu os Irmãos Aniceto, do Crato, para mostrarem à comunidade a dança que já levaram até para a Europa. E para quem não conhecia, a terreirada virou pretexto bom para que os jovens pudessem conversar e fotografar a artesã Lúcia Pequeno, que fabrica peças de barro cobiçadas até em outros países.
"O curso Patrimônio Para todos apresentou aos alunos de Limoeiro do Norte o conceito sobre Cultura, Patrimônio, e Bem Imaterial, e busca, por meio da memória, a valorização das diversas formas de expressões que são peculiares ao povo", publica o site, logo abaixo das fotos dos jovens participantes. Eles que, sem pegar os livros da escola ou ouvir do professor em sala de aula, participaram, pela primeira vez, de três dias de aula sobre a cultura das diversas comunidades do Ceará.
FIQUE POR DENTRO
Troca de experiência
O V Encontro Mestres do Mundo aconteceu de 17 a 20 de março, em Limoeiro do Norte. Mestres da Cultura de vários Estados do Brasil reuniram-se, neste município, para a troca de experiências sobre seus saberes e fazeres, divididos em cinco categorias: mestres das Mãos (artesãos, bordadeiras etc.), do Corpo (dança, teatro, reisado), do Som (músicos, instrumentistas, luthiers) e mestres da Oralidade (contadores de história, poetas, cordelistas e repentistas). O curso Patrimônio para Todos era dividido em duas turmas, que se encontravam nas pesquisas de campo com os diversos mestres. A pesquisa está publicada e registrada no blog do projeto: patrimonioparatodos.wordpress.com.
Fonte: Diário do Nordeste / Reportagem: Melquíades Júnior
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