sábado, 20 de março de 2010

A reinvenção da roda

Em grande estilo, numa animada brincadeira de roda, termina neste sábado o V Encontro dos Mestres do Mundo, realizado anualmente pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, na cidade de Limoeiro do Norte.
A roda grande está saindo de dentro da roda pequena. Ela é trêmula e heterogênea. Da brincadeira, participam mestres, aprendizes e quem nunca tinha ouvido falar em Mestres da Cultura. No V Encontro dos Mestres do Mundo, que se encerra neste sábado (20/03), acontece, nas rodas de mestres, seu maior momento de interação. "Você faz que é como um terreiro, só que não é. Mas é", retruca José Pio, de Fortaleza, referindo-se às salas com os mestres das modalidades de sons, oralidade, corpo, mãos e sagrado. A primeira roda já inventada pelo homem, a da cultura, transforma-se e no meio do terreiro. Os saberes e fazeres são transmitidos para as novas gerações.
Em muitas comunidades onde vivem os Mestres da Cultura, a juventude tem vergonha, não quer participar das brincadeiras, dos reisados, ladainhas; mas na "Roda dos Mestres", a batucada, seja do tambor ou do pé no chão, mais parece uma injeção na veia. "Não tem como ficar parada", diz a estudante Gabriela Teixeira, 16 anos.
O evento também contou com a participação dos Irmãos Aniceto.
Se o mundo vai acabar, a profecia já estava musicada por dona Maria do Horto, de Juazeiro. A lavadeira que entoa as ladainhas ao Padim Ciço ecoou "Lampião de gás", música de sua autoria, para além das salas do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia, onde acontecem as rodas.
"Quando o mundo começou/ era um candeeirinho de luz/ é com ele que alumeia, o coração de Jesus/ Mas como vai ser bonito, os tempos velhos voltando/ nas cidades do Nordeste, os carros de boi cantando: lampião de gás". A ideia de dona Maria para a música começou com a seca do São Francisco e a população assustada com a falta de energia há uma década. Segundo dona Maria, "o lampião de gás é o que começou e o que vai permanecer". Ela ainda musicou que, quando o mundo der uma reviravolta, "a Cagece e a Coelce para sempre vão embora, mas o lampião de gás, esse fica na história...". O sonho da Mestre da Cultura é ver uma banda gravando sua música, "mas pagando os meus direitos e pronto, fico feliz".
Ponte
E pode ser curta a ponte entre sonho e realidade da mestra, se é verdade que o tradicional mais que antes virou elemento midiático. "Com a modernidade, o que não está na mídia é cafona. E está aparecendo agora uma nova moda, a cultura popular. Ela é o ‘de ponta’. O que é careta é não ser cultura popular. Ser bonito é ser como índio, como quilombola, como brincante. Antes era coisa de menino e de velho, agora tá ficando coisa de juventude", acredita o jornalista e sociólogo Oswald Barroso.
Memória
Entre mal e bem, Oswald defende que o interesse pelas manifestações culturais populares, pelos jovens, faz parte da manutenção dos saberes e fazeres. É quando entram a oralidade e a escrita como formas de retenção da memória. "A expressão oral, ou corporal, por assim dizer, é o que caracteriza as culturas tradicionais".
Mestre da Cultura também tem outro quase-sinônimo, hoje tratado como alternativa pedagógica de ensino das tradições populares. Grupos de brincantes e pesquisadores da Bahia defendem a Ação "Griô", termo da cultura africana que significa "aquele que transmite". "É a difusão de um trabalho de vivência da comunidade. Todos que trabalhamos com a oralidade somos mestres do saber popular. Preciso ter cuidado para não ser um oficinero, e sim um transmissor do saber do jeito que eu entendi, pelo que aprendi com meus mestres", explica Alcides Lima, representante da Ação Griô, de São Paulo.
Palco armado, poste com a luz reforçada, chão aguado e os bancos da igrejinha ao lado para não deixar os mais velhos em pé, e, na comunidade de Córrego de Areia, foi aberta a terreirada para mestre convidado. Fazendo as honras da casa, mestra Lúcia Pequeno, do artesanato em barro de Limoeiro do Norte. A comunidade rural teve a oportunidade de ver os já internacionais Irmãos Aniceto e dançou com as ainda pouco conhecidas "Dramistas de Quixeré".
As dramistas de Quixeré roubaram a cena durante a terreirada do Córrego da Areia, em Limoeiro do Norte.
Dramistas
Fazendo parte do Encontro Mestres do Mundo, a terreirada é a parte em que o mestre do lugar convida os mestres de fora, para que a comunidade conheça as artes. A pequena pracinha da comunidade, sem qualquer atrativo, virou a sensação da meninada. Viram as estripulias de seu Raimundo Aniceto e os outros irmãos do grupo. Dançaram, cantaram e riram com a dança do ataque das abelhas, do homem desinformado que vai tirar leite da colmeia.
Mas a cena foi roubada pelas dramistas de Quixeré, município vizinho. A peleja no verso das senhoras só não é maior do que a peleja para os mais jovens continuarem a manifestação. "Menino, é uma emoção tão grande, que se os filhos e netos da gente soubessem, nunca que deixariam isso morrer", afirma dona Maria de Fátima, só conhecida por "Maria de Ana de Manel". Este, seu esposo desde os 16 anos, é quem puxa o ritmo do drama com a viola nos braços.
Para outra dramista do grupo, dona Susana Rodrigues dos Santos, dançar o drama hoje é passar um filme de antigamente. "A gente pegava uma garrafa, um pavio, enchia de gás pra alumiar, colocava nuns troncos nos cantos do terreiro, botava uma madeira no chão pra dançar em cima. As mesmas que brincávamos quando criança são as que brincamos hoje", afirma a dramista, de 63 anos. De ontem para hoje, a diferença foi só a substituição da luz de garrafa pelos postes de luz elétrica. Mas a depender da profecia de dona Maria do Horto, de Juazeiro, ainda pode voltar a ser festa no terreiro só com lampião.
Neste último dia do Encontro, após a manhã de roda com os mestres, à noite acontece uma missa e apresentação da dança de São Gonçalo, da Mestra Expedita dos Santos, de Tianguá, seguida pela mestra Badia Alves, moda de viola de Goiás, e dos grupos Siba e a Fuloresta, de Pernambuco.
Informações: Diário do Nordeste / Reportagem e Fotos: Melquíades Júnior

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