sexta-feira, 19 de março de 2010

Uma dança de fé: Tambor de Crioula e o Manto de São Benedito, do Maranhão

O Tambor de Crioula e o Manto de São Benedito, do Maranhão, roubaram a cena na abertura do V Encontro dos Mestres do Mundo.
O tambor toca, tudo acorda. O gingado do corpo voluptuoso da negra (foto) espreguiça, o santo é homenageado, ou o preto velho e o rei de congado. O tambor chama a coreira, que dança, sapateia, requebra até que a batida de umbigos representa a "punga" e sinaliza o convite para outra assumir lugar em frente ao tambor grande. "Quando o tambor toca, a emoção... Ave Maria, nem sei, porque quando o tambor começa, meu filho, fervilha, o negócio vai me possuindo, eu me sinto no paraíso".
E assim vai se sentindo a Mestra Maria Cantanhede, do Tambor de Crioula e Manto de São Benedito, do Maranhão. No V Encontro dos Mestres do Mundo, em Limoeiro do Norte, as danças comandam: som, fé, história e raízes culturais.
"A minha cultura é centenária, um morre e o outro vai levando", conta a mestra Maria Cantanhede, de 66 anos. Enquanto o tambor vai passando de geração para geração, a dança resiste com a ginga de uma das manifestações folclóricas mais antigas do Brasil. O Tambor de Crioula é uma das maiores tradições do Maranhão. Afinal, no Brasil inteiro não faltaram senzalas ou quilombos, onde os negros bailavam, pagavam promessas e brincavam.
E pelo País danças, como a do Tambor de Crioula, foram se espalhando. Um exemplo é o congado, no Rio de Janeiro, que também tem as umbigadas, feito as "pungas" (espécie de samba de roda) das dançarinas, chamadas de coreiras - uma avisando para a outra de quem é a vez. E o círculo da dança parece uma roda de fogo flamejante, ritmada pelo tambor grande, o meião e o crivador, conhecido por perereca. A matraca, que o diga os adeptos da musicoterapia, dá o ritmo cadente. É a mestra quem libera a "punga" para outras mulheres entrarem na roda.
Durante a dança, em frente do tambor grande sempre tem um dançarino. O tambor de Maria Cantanhede tem mais de 60 anos. "Minha avó morreu, passou para minha mãe, e eu comecei a dançar com três anos de idade".
Há muito tempo ela é professora na Associação Cultural Tambor de Crioula e Manto de São Benedito, em São Luis, no Maranhão, um dos mais repletos de manifestações quilombolas. "Falam que começou em Alcântara, mas o primeiro tambor de crioula nasceu em Guimarães", pontua a mestra, mesmo esclarecendo que "nascer, nasceu mesmo na África, quando os 'colarinho branco' 'senzalavam' os escravos. A cultura negra é o tambor de crioula, outro não interessa", afirma a herdeira da cultura do Quilombo de Frechal, no Estado do Maranhão, reduto de uma das maiores miscigenações de raças do país.
Durante o V Encontro dos Mestres do Mundo, as danças comandam a festa: som, fé, história e raízes culturais estão em evidência no gingado voluptuoso do corpo da dançarina. (Foto: Melquíades Júnior)
Cultura secular
O tambor de crioula traz o manto para São Benedito, "que é preto e gosta de tambor". É a cultura secular do povo quilombola que resiste, e a fé que mistura catolicismo e tradições africanas, um sincretismo religioso que intercede corpo e alma. "O tambor é raiz, ninguém tira, tem que estar no sangue", conta a mestra. "A dança popular é a dança do lugar, a dança de cada um. A dança do Maranhão também é do Ceará. Somos mestiços, então toda dança brasileira é nossa. O Brasil é o país das danças, das manifestações", afirma a pesquisadora Graça Martins, dançarina e membro da Comissão Cearense de Folclore.
Os brincantes dançam com o corpo e com a fé, seja a São Benedito, a um preto velho ou a caboclos como Antonio Luis Corre Beirada, conhecido dos umbandistas. "A maioria das danças tem origem religiosa, assim temos o bumba-meu-boi, o pastoril, pois mesmo a dança que se faz profana também é religiosa", explica Graça Martins.
São Gonçalo
Se o tambor de crioula do Maranhão também 'pertence' ao Ceará, mais ainda se pode dizer do culto a São Gonçalo, "um santo bom como os todos", costuma definir o Mestre Joaquim Ferreira da Silva, de Quixadá. "A gente viaja, tira longe pra dançar. Alguém tem uma promessa a pagar a São Gonçalo, aí chama a gente. Chegamos na sexta-feira, pra dançar no sábado, que não dançamos em outro dia. Nos dão o (dinheiro) da ida e da volta, e pagando o do sabão, que é pra lavar as roupas que ficam tudo sujas depois da dança tá bom demais. A gente faz porque gosta", esclarece o Mestre, que nasceu e difunde a manifestação folclórica na comunidade de Sítio Veiga, na Serra do Estevão, em Quixadá, que tem mais história: foi porto seguro de escravos fugidos. Após anos de luta para o reconhecimento, o povo comemora a inclusão do lugar como uma autêntica comunidade quilombola, remanescente dos quilombos. É a São Gonçalo que agradecem, pois como diz a contaria do grupo, "é um santo muito milagroso. É de Deus amado e de todo o povo. Quem a São Gonçalo serve, será servido. É de Deus Amado. É de todo o povo".
Com um tambor pequeno na mão, o mestre Joaquim Ferreira da Silva participa da Roda do Corpo (que divide espaço com as rodas da Oralidade, do Sagrado, das Mãos e dos Sons) nas manhãs do Encontro dos Mestres do Mundo, reunindo mestres da cultura popular das danças daqui e alhures, como Andréas Hamester, do Grupo Folclóricos de Estrela, entidade que divulga a cultura alemã, na região do Vale do Taquari, região central do Estado do Rio Grande do Sul. "A cultura alemã é forte na nossa região, e o Grupo Estrela mantém há 43 anos o trabalho, atualmente tem 450 dançarinos, mais de dois mil ex-dançarinos. Já estivemos em 14 países, entre América Latina e Europa", diz instrutor, que participa do encontro dos mestres.
Tambor de Crioula, do Maranhão, atração do primeiro dia dos Mestres do Mundo: cultura secular dos quilombolas misturando o profano e o sagrado. (Foto: Felipe Abud)
As manifestações culturais no sul do País são tão diversas que, para Andréas, "incomum são as manifestações brasileiras. O Rio Grande do Sul tem 14 colônias de diferentes países europeus. Então para nós diferente mesmo são a comida, as vestimentas, a cantoria, as danças brasileiras. Tenho cinco mil quilômetros de distância da minha cidade até Limoeiro do Norte, isso é muito, com mais cinco mil quilômetros eu estaria na Europa (risos), então é muita coisa diferente no meio disso", afirma. E se para os mestres e brincantes cearenses e mesmo maranhenses a transferência dos saberes e fazeres tem tido maior resistência dos mais jovens, não é o que acontece no Sul, segundo Andréas.
"Se muitos jovens aqui não participam, tem que abrir o olho corre-se o risco de se perder muita coisa ao longo de uma geração. Na minha cidade, temos uma expressão fortíssima de crianças que participam. Dos 450 dançarinos, cerca de 300 são crianças ou adolescentes. A média de dança é próximo de 15 anos de idade", esclarece.
Mas para Maria Cantanhede, enquanto o tambor tocar, ninguém vai parar. "Nem velho, nem criança, branco, preto, índio, hoje somos uma raça só, tudo é de todo mundo. Quando eu morrer, outra pessoa vai levando, e assim vai... O Tambor de Crioula e Manto de São Benedito, do Maranhão, dançou na primeira noite do Encontro Mestres do Mundo. Apresentação que, para mestra Maria, não deveria nunca terminar: "aí você ouviria cantar ´chega pra roda, mulher; chega pra roda, o tambor tá te chamando, chega pra roda mulher...".
Mais informações:
V Encontro dos Mestres do Mundo, em Limoeiro do Norte. Nesta sexta-feira (19/03), após a roda de mestres pela manhã, segue de 14h às 17h, Seminário sobre Políticas Públicas para Patrimônio Cultural. À noite, terá Dança do Coco, do Mestre Moisés, de Trairi, Samba Chula, da Bahia e o grupo Fandango Pés de Ouro, do Paraná.
Informações: Diário do Nordeste / Reportagem: Melquíades Júnior

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